A felicidade hoje é fechar os olhos
ARNALDO JABOR
Antigamente, a felicidade era uma espécie de "missão" a ser cumprida, a conquista de "algo maior" que nos coroasse de louros; a felicidade demandava o "sacrifício", a renúncia, a luta contra obstáculos. A idéia de que a felicidade se "constrói" já ficou para trás. Hoje, felicidade é ser desejado.
A idéia de felicidade não é mais interna, como a dos monges, ou a calma vivência do instante, ou a visão da beleza. Felicidade é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar alguém a ser consumido. Felicidade é ter um bom funcionamento. McLuhan escreveu que os meios de comunicação são extensões de nossos braços, olhos e ouvidos. Hoje, nós somos extensões das coisas. Fulano é a extensão de um banco, sicrano comporta-se como um celular, beltrana rebola feito um liquidificador. Assim como a mulher deseja ser um eletrodoméstico, um "avião", peituda, bunduda, o homem quer ser uma metralhadora, uma Ferrari, um torpedo inteligente, e mais que tudo, um grande pênis voador sem flacidez e angústias. Confundimos nosso destino com o destino das coisas... Felicidade não é mais lenta ou contemplativa - é velocidade. O mundo veloz da Internet, do celular, do mercado financeiro nos imprimiu um ritmo incessante, uma gincana contra a idéia de morte ou velhice, melhor dizendo, contra a obsolescência do produto ou a corrosão dos materiais.
Somos "felizes" dentro de um chiqueirinho de irrelevâncias, bagatelas, micharias. Uma alegria para nada, para rebolar o rabo nas revistas, substituindo o mérito pela fama. Essa infantilização da felicidade pela mídia se dá num mundo em parafuso de tragédias sem solução, como uma disneylândia cercada de homensbomba. Não precisamos fazer ou saber nada; o sujeito só existe se aparecer.
Há alguns anos, a infelicidade, a tragédia ainda provocavam escândalo. O Holocausto, Hiroshima - jogaram o mundo em cava depressão, mudou a visão da vida. E hoje? O crime hediondo está mais aceito, o Iraque é apenas um assalto corriqueiro à razão, estamos acostumados ao horror como um cotidiano inevitável. O horror deixou de ser um susto - faz parte da vida. A incessante pantomima da alegria movida pelas novidades eletrônicas, pelo marketing inovador da tecnociência serve para camuflar a melancolia que nos atinge e que temos de "forcluir", tirar de cena, como dizem os analistas, essa pobre minoria de defensores da razão.
O pensamento humanista está lamentoso de tanto absurdo. De que adianta falar em compaixão ou afeto a propósito de um menino de 13 anos que decepa a cabeça de um colega com um machado, com as mães atirando filhos nas lixeiras e brejos? Como falar em democracia com muçulmanos analfabetos, que desde o século VII se massacram por um ser inexistente, educando criançasbomba nas "madrassas", para extirpar qualquer resquício de razão no Ocidente, enquanto, do outro lado, os monstros caretas do Bush repetem mantras da Bíblia fundamentalista?
Para a felicidade, só nos resta "não ver". Fechar os olhos. É uma lista de negativas: não ter câncer, não ler jornal, não ligar para as tragédias, não olhar os meninos malabaristas no sinal, não ver os cadáveres explodidos na TV, não ter coração, se transformar num clone de si mesmo, num andróide programado para ter esperança, vivendo um presente infinito e longo, incessante e delirante como um "rave" sem fim.
Há um grande livro de science-fiction (talvez o maior) "Tiger Tiger" (antigo "The Stars my Destination"), de Alfred Bester, no qual há um grande SPA em Marte para supermilionários onde eles teriam a suprema felicidade de viver extirpados de todos os sentidos, apenas os cérebros funcionando em "alfa", livres de qualquer angústia. Um dia, chegaremos lá.
Oscilamos entre o desejo de ser "especiais", únicos, brilhantes indivíduos, celebridades que fujam do escuro anonimato e o desejo de virar pó, de ser uma formiga obediente, conduzida por um comandante qualquer.
E tudo sempre em nome da palavra-chave da época: a liberdade, que todos fingem querer, a liberdade respirando como um bicho sem dono entre o individuo e a massa, a liberdade - esta coisa que provoca tanta angústia. O Big Brother do capitalismo de mil olhos se apossou de uma nova mercadoria: a liberdade. A América corporativa se apossou até da consciência crítica e fetichizou- a. Num filme como "O Clube da Luta" ou "Matrix", vemos a chamada crítica ou autocrítica "de mercado", um estratagema para incorporar a idéia de transgressão e ódio ao sistema e, assim, paralisá-la. Vejam a passividade da juventude norte-americana, que só agora começa a acordar para o monstro Bush; comparem- na com os milhões contra a guerra do Vietnã. A liberdade/felicidade virou mais uma camuflagem do capitalismo.
No fundo, temos uma secreta nostalgia da submissão. A liberdade dá angústia. Dostoievski acerta na mosca, prevendo o tempo de hoje, quando no espantoso e profético capítulo de "Os Irmãos Karamazov", intitulado "O Grande Inquisidor", nos escreve do passado, na grande diatribe do inquisidor a Cristo: "Você esqueceu que o homem prefere a paz e mesmo a morte ao invés da liberdade de ter de escolher entre o bem e o mal? Pode ser muito sedutora a idéia para os homens de ’livre arbítrio’, mas nada lhes é mais doloroso. Em vez de princípios sólidos que pudessem tranqüilizar a consciência humana para sempre, você escolheu noções vagas, enigmáticas, tudo que vai além da possibilidade humana, e assim você agiu sem amor por eles, você, que diz ter vindo salvá-los! Você aumentou a liberdade humana, em vez de confiscá- la! (...) depois de 15 séculos, que restou? Você não conseguiu elevar ninguém até a sua altura divina! O homem é muito mais fraco e vil do que você imaginou".
É isso aí... O chamado "indivíduo" livre está cada vez mais ridículo. O "eu" virou um privilégio para meia dúzia de loucos e, claro, para as grandes corporações donas do mercado do desejo. Entramos no século XXI regidos por deuses malucos, do Oriente ao Ocidente. Na realidade, chegamos ao século VII, apenas com tecnologia avançada...
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